A explosão de manifestações antirracistas desencadeadas pelas mortes de George Floyd, 27 anos, homem negro-americano, assassinado por um policial branco, e João Pedro, de 14 anos, que levou um tiro dentro da própria casa durante uma operação policial no Rio de Janeiro, em maio deste ano, colocaram em evidência as discussões sobre o racismo estrutural.
Os dois casos de violência praticada por agentes do Estado contra pessoas negras são exemplos de racismo estrutural, denunciado há décadas pelo movimento negro e intelectuais negros, mas invisibilizadas pela mídia comercial.
Mas, afinal o que é racismo estrutural, que por muitas vezes é confundido com racismo institucional? Ainda existe? Como ele funciona? Como atinge a vida das pessoas?
Em um bate papo com a filósofa Djamila Ribeiro sobre o tema, o professor de direito Silvio Almeida afirmou que “não existe racismo que não seja estrutural”
“É estrutural [o racismo] porque estrutura todas as instituições”, pontuou o professor, que também é presidente do Instituto Luiz Gama e autor do livro “O que é racismo estrutural?”, da coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila.
“[Racismo estrutural] não é só uma questão moral, não é uma questão jurídica, não é uma questão somente econômica”, continuou Silvio, lembrando que o racismo está em todas as estruturas da sociedade.
Para entender as raízes do racismo estrutural no Brasil e como essa história começou e se perpetua até os dias de hoje, é necessário voltar ao início século XVI ao século XIX, onde foi instituída a escravidão, marcada principalmente pela exploração forçada da mão de obra de negros e negras trazidos do continente africano e transformados em escravos pelos europeus colonizadores no Brasil.
Os três séculos de escravidão no Brasil, situação que só teve fim por conta da resistência dos negros escravizados, somado ao interesse econômico internacional, deixaram marcas profundas de desigualdade em todas as estruturas de poder no Brasil. Disparidade que deixou, orienta e conduz, até os dias de hoje, as relações econômicas, sociais, culturais e institucionais do país.
No pós-abolição, em 1888, pessoas negras não tiveram acesso à terra, indenização ou reparo por tanto tempo de trabalho forçado. Muitos permaneceram nas fazendas em que trabalhavam em serviço pesado e informal. Foi a partir daí que se instalou a exclusão de pessoas negras dentro das instituições, na política, e em todos os espaços de poder.
Racismo estrutural é um conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas, culturais dentro de uma sociedade que frequentemente privilegia algumas raças em detrimento de outras. O termo é usado para reforçar o fato de que há sociedades estruturadas com base no racismo, que favorecem pessoas brancas e desfavorecem negros e indígenas.
Falar de racismo estrutural, é lembrar das questões centrais que mantém esse processo longo de desigualdade entre brancos e negros que se desdobram no genocídio de pessoas negras, no encarceramento em massa, na pobreza e na violência contra mulheres.
O racismo tem diversas maneiras de se manifestar, diz a doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Adriana Moreira, alertando que é necessário pensar em estratégias e instrumentos para combatê-lo.
Um exemplo que ela dá é o quesito cor. De acordo com a doutora, o sistema, que controla as matrículas e as informações das crianças nas cidades, foi implementado sem que nenhum funcionário da rede passasse pela formação para debater o quesito cor.
“Precisamos entender porque os meninos negros saem mais cedo da escola do que os garotos brancos, o que acontece no ambiente escolar, quais são as trajetórias desses meninos, porque que esses meninos são mais colocados numa trajetória de morte na adolescência do que os meninos brancos. São questões fundamentais, que quando a gente discute a estruturação dos processos, constrói a racionalização das instituições e das relações institucionais e interpessoais, ajuda a pensar em possibilidades de desfazer os processos”, argumenta Adriana.
Para Anatalina Lourenço, secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, o racismo é o principal instrumento de exclusão da sociedade brasileira, onde é impossível negar todas as suas formas e consequências para o povo negro. Por isso, afirma, não se aprofundam no país os instrumentos para entender tudo isso que a doutora Adriana pontuou.
“Que o Brasil é um país racista, isso ninguém nega. Que o racismo é estrutural nas relações socioeconômicas, de trabalho, institucionais e afetivas, isso também ninguém nega. Que o racismo mata a partir da ação principalmente da Polícia Militar, isso é evidente. Que o Brasil na sua conjuntura se constituiu não só como racista, mas como principal instrumento de exclusão, isso também é impossível de negar, mas alguns ainda negam”.
A ausência de negros e negras em cargos de lideranças nas maiores empresas do país mostra que o racismo estrutural atua em diversas dimensões e camadas. Ele estrutura a sociedade a partir da desvalorização e restrição de oportunidades de pessoas negros a na ascensão social.
Um dos exemplos de caso de racismo estrutural, no qual o Brasil está assentado, foi a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, deixado no elevador por Sarí Côrte Real, patroa da mãe de Miguel, enquanto a doméstica passeava com o cachorro da família. A patroa apertou o botão de um andar alto, liberou a porta e, indiferente, retornou ao lar para continuar fazendo as unhas.
Miguel, de 5 aninhos, desembarcou em outro andar, passou por uma porta e, á procura da mãe, acabou chegando em uma área sem tela de proteção, despencou de altura de 35 metros. Era filho único da empregada doméstica Mirtes Renata que o levou ao trabalho por a escola estava fechada por causa da pandemia do novo coronavírus.
Outro exemplo de racismo estrutural que não se pode esquecer, foi a morte da empregada doméstica de 63 anos no Rio de Janeiro, a primeira vítima da Covid-19 no estado, que trabalhava num apartamento no Alto Leblon, bairro da zona sul do Rio, que tem o metro quadrado mais valorizado do país. Foi negado a ela o direito de ficar em casa durante a quarentena, já que ela fazia parte do grupo de risco. A patroa que havia chegado da Europa se contaminou e sobreviveu, a doméstica não.
A pandemia do novo coronavírus explicitou o racismo estrutural no Brasil, onde os maiores afetados pela maior crise sanitária do século são, além das pessoas em situação de vulnerabilidade social, a população negra, indígena e a classe trabalhadora, como a doméstica do Rio de Janeiro e o menino de Pernambuco.
Estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirmam que pretos e pardos morreram mais de Covid-19 do que brancos no Brasil. O grupo analisou a variação da taxa de letalidade da doença no país de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas da população.
“É um racismo abissal que se evidência em diferentes formas. O vírus se alastrou pelas periferias do país e passou a ter endereço. E se entendemos que no Brasil a grande maioria população é negra e pobre, nós já sabemos quem foi que morreu”, afirma Anatalina, que também é cientista social formada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Considerando esses casos, quase 55% de pretos e pardos morreram, enquanto, entre pessoas brancas, esse valor ficou em 38%. A porcentagem foi maior entre pessoas negras do que entre brancas em todas as faixas etárias e também comparando todos os níveis de escolaridade.
Para combater o racismo e essas desigualdades, é necessário uma disposição política de reconhecimento, diz a doutora Adriana. “Quando a gente discute racismo, a gente está discutindo uma possibilidade de readequação e de distribuição de bens materiais que são simbólicos na sociedade brasileira. Isso é uma questão central”, finaliza.
Fonte: https://www.cut.org.br/noticias/saiba-o-que-e-racismo-estrutural-e-como-ele-se-organiza-no-brasil-0a7d